domingo, 11 de novembro de 2012

Brinquedo quebrado


Ao acordar, deu-se conta de quem era e de todas as coisas que existiam. Ela era alguém.  Não de carne e osso, mas havia sido criada para fazer com que acreditassem nisso.  Quando abriu os olhos, viu pela primeira vez aquele que conhecia tão bem. Ela o sentia antes mesmo que desse conta de si mesma. Ele era seu criador, inventor, seu princípio, sua razão de ser. Observou atentamente o sorriso que roubava a cena de todo resto. Era um sorriso triunfante, jubiloso e egoísta, mas era lindo e hipnotizante, era mais que qualquer outra coisa que ela pudesse descrever. Delicadamente, as mãos dele encontraram as dela, dando um leve puxão, indicando que ela deveria acompanhá-lo. Enquanto a conduzia, começaram uma dança suave pelo porão. Essa sensação era boa, algo em seu peito ardia de leve. Ao rodopiarem, ele cantava freneticamente uma música desconhecida e ela, registrava cada pequeno traço do ambiente com curiosidade. Tudo girava em cores e cheiros. Todas as coisas ali eram novas, e ao mesmo tempo familiares. E isso era estranho para ela, estranho e bom.  Ela vestiu-se então de cetim, com uma saia linda que escondia várias camadas de tule. O corpete tinha cordões que trançavam em suas costas. Os sapatos de boneca tinham saltos não tão altos e a fivela que os fechava desfiava a fina meia que cobria a falsa pele. Luvas delicadas, uma faixa no cabelo preto perfeito, que descia até quase a altura dos quadris. Nem um fio estava fora do lugar, sua pele era lisa e branca, seus olhos artificialmente penetrantes e curiosos. Ela estava pronta e perfeita, assim como tinha sido projetada. Ao finalizar o ritual, ele puxou sua mão direita e nela colocou uma aliança, que ao contrário de tudo que usava, não era nada nova. Nela havia uma inscrição quase ilegível: Sempre fiel a você. A promessa eterna selada nos lábios frios e inertes.
Dias se seguiram de felicidade inesgotável. Passeios pelo parque, sorrisos, histórias, satisfação e porque não, amor. A casa era imensa. Passaram a se conhecer melhor, ele era só dedicação e ela afeto. Fizeram viagens, foram a Veneza, a Marselha, onde tiveram dias felizes. Depois de meses voltaram para casa, pois ele estava sempre dizendo algo a respeito de um novo projeto. Era um homem trabalhador e dedicado, todos os dias ele acordava antes das seis e se dirigia ao porão onde, se trancava. Só saía de lá tarde da noite, tempo para ele tomar banho e jantar. Ás vezes, ele tomava vinho em sua poltrona, enquanto desfrutava da presença dela, outras vezes, nas noites de lua cheia, iam para fora da imensa casa, e colocava-se a contemplar o céu, ele admirava a linda lua e ela o admirava. Quando o sol voltava, ele regressava ao seu mundo particular. Durante o dia, ele lá só saía na hora das refeições. Ela, sem companhia e sem muito o que fazer passava o dia observando cada canto da propriedade. As flores e plantas do jardim, os nomes dos autores dos inúmeros livros da estante do escritório. Nos corredores, várias pinturas de mulheres lindas, mas sempre com a mesma expressão triste no rosto. Ela não gostava do corredor. A cada vez que passava por ali, sentia-se observada por cada uma delas. Quando o sol se despedia, ele regressava ao seu encontro, onde ficavam juntos, sempre contando histórias ou simplesmente contando estrelas no céu.  E foi assim por um bom tempo.
Dois anos se passaram, os passeios diminuíram, as histórias acabaram e mais distante ele ficava. Já não era mais como antes. Os jantares eram cada vez menos freqüentes e os sorrisos eram raros. O que nunca mudava era a sensação ruim que sentia, se é que sentia, a cada vez que passava pelo corredor onde se encontravam os quadros. Um dia ao andar pela casa a procura de novas descobertas pela propriedade, escutou uma voz que a chamava. Achando que era dele, olhou para trás, mas nada viu além dos vários quadros em suas molduras douradas. Chegou próximo a tela de uma moça sentada em um jardim. Dentro dos olhos da moça viu o pânico e o alerta. Olhou para outro quadro, e o mesmo lhe ocorreu. Correu então sem mais olhar para trás, cerrou os ouvidos com as mãos para que não mais ouvisse os gritos de alerta que ecoavam em sua mente. Chegou à sala, fechando a porta atrás de si, e despencou-se sobre a poltrona de frente a lareira. Ela não sabia que sensação ruim era aquela, mas sabia que não era nada de bom. Quando fosse noite e ele retornasse, ela pediria para que retirasse os quadros dali. Talvez ela pudesse aprender pintura e quem sabe faria quadro alegre para colocar ali. Viu então um livro de capa bonita, sobre a mesa de centro, resolveu pegar e lê-lo. Era um livro bom, tão bom que quando percebeu, ele estava parado á sua frente, chamando-a para acompanhá-lo para jantar.  Ele jantava feliz, ainda não tinha tomado banho. Sua testa estava coberta de suor e fuligem. Ela estava sentada do outro lado da sala de jantar, com a postura perfeita, observando-o comer. Lembrou-se  então da história do livro e sorriu, era uma história realmente bonita e feliz. E foi pensando no livro que se lembrou do fato que a levara a chegar a ele. Começou a conversar então com ele sobre a ideia de poder quem sabe, aprender pintura. Ele largou seu talher surpreso com a proposta dela, perguntou o motivo de repentina ideia. Ela explicou da vertigem que os quadros lhe causavam. Ele baixou a cabeça, e disse que poderia ensiná-la. Agora que ele terminara seu projeto, poderia passar as tardes ensinando ela a pintar. E assim, se seguiram mais algumas semanas, onde ele permanecia todas as tardes no jardim com ela. Porém, ele não a ensinava nada. Ela ficava sentada de frente ao cavalete dela, tentado reproduzir as hortênsias, e ele de frente a outro, fixando seu olhar ora nela, ora na tela. Foi um dia em que ela impacientou-se com essa situação, levantou e foi falar com ele. Pediu para que ele a ajudasse, e ele mais que depressa a virou a tela para que ela não visse. Ela zangada exigiu que ele a ensinasse a pintar, pois ela simplesmente não conseguia. Ele disse, que ela deveria treinar da forma que desse, e depois ele a corrigiria. Ela então tentou novamente ver o que ele fazia  e como resposta, sentiu sua mão forte a estapeá-la. De tão forte caiu no chão. Sentiu seu peito comprimir-se, sentiu algo estranho na garganta. Do que conhecia de choro, sabia que aquele era o momento e se ela pudesse, choraria. Ele então a ajudou a levantar, e mandou sentar-se novamente. Pediu desculpas a ela, mas foi muito hostil em seus gestos. Ela sentou-se no mesmo lugar, porém estava infeliz com o que havia conhecido, ele não era mais o mesmo. No fim da tarde, ele pegou a tela e levou para o porão, de lá não saiu por três dias. Ela não tinha permissão de ir lá. Passava os dias sozinha pela casa e as noites sozinha em sua cama. No terceiro dia da ausência dele, não aguentou mais. Levantou-se, vestiu-se com seu mais belo vestido e dirigiu-se a até o porão. Para isso, passou pelo tenebroso corredor, porém na ouviu mais nada que a irritasse, porém tinha a impressão que o semblante das moças no quadro mudaram, mas embora sua própria vida fosse sobrenatural, sabia que aquilo não era possível. Desceu as escadas sem olhar para trás e chegou até uma grande porta de ferro. Bateu uma, duas, três vezes e nada. Resolveu então girar a maçaneta, abriu a porta e lá estava ele, sentado de frente o sua mesa, com uma máscara e uma ferramenta na mão. Ela foi aproximando-se dele tocando então de leve os dedos em seus ombros. Ele se assustou, deixando cair sua máscara de trabalho. O rosto dele era de fúria, e sua boca esbravejavam contra ela. Ao baixar a cabeça enquanto ele a punia com severas palavras, ela viu, sobre a mesa um corpo inerte, lindo, feminino. Os olhos fechados, lábios rosados, pele branca como a dela, mas, de longos cabelos dourados, que pendiam da mesa com grandes cachos. Sua reação foi de profunda consternação, sua dor era inexplicável. Vendo que ela descobrira seu grande feito, ele puxou sua mão direita e arrancou a aliança de seu dedo. Aquilo machucara muito, mas por dentro. Ele então arrancou seu vestido, suas meia, seus sapatos. Ela ficara completamente nua, assim como viera a esse mundo, que não mais parecia dela. Algo surreal aconteceu, lágrimas caíram do seu rosto, escorrendo sobre a pele artificial. Ele então a puxou violentamente pelo braço, levando-a para fora dali. Percorreram toda a casa, e se dirigiram para fora da propriedade, ele segurava seu braço tão forte, que acabou por quebrá-lo, mas não era o braço que doía. Atrás da casa, depois dos arbustos do jardim, havia um pequeno galpão, fechado com correntes e cadeado. Chegaram a porta, quando ele deixou seu braço e sacou um molho de chaves. Destrancou a porta e virou-se novamente para ela, então parou o seu rosto no dela por alguns instantes, percebendo pela primeira vez as miraculosas lágrimas que escorriam. Passou seus dedos pelo rosto triste, enxugando as lágrimas, e puxou-a para beijar teus lábios. E então a dor foi insuportável, sentiu seu peito, sendo rasgado, algo frio perfurava sua pele provocando uma dor excruciante e quanto os lábios dele ainda pressionavam bruscamente os dela. De repente seu  corpo foi adormecendo, ficando inerte ela foi ficando fraca e foi então que ele a largou vagarosamente. Os olhos dele novamente a penetravam, só que ela agora focava sua visão em outra cena. Nas mãos dele escorria um líquido carmim e segurava algo pulsante, algo que fora seu. Olhou então para seu peito e sentiu o buraco que ali estava, o líquido estranho também percorria sua pele, e começou a ficar mais ralo, devido aos pingos de chuva que caíam sobre seu corpo. A chuva era a única ali que se compadecia dela, começara fina e ela nem percebera, agora engrossara, ficando cada vez mais forte, como se protestasse a atitude do ser amado. Ele então puxou seu braço quebrado, e lançou-a dentro do galpão. Ela caiu, sobre coisas duras, de texturas similares, mas ela não podia ver. A escuridão tomava conta a medida que ele lacrava a porta a sua frente. Ela era apenas um brinquedo quebrado, que estava velho demais agora. A luz do luar revelou outros corpos como o dela, jogados ali. Os rostos que ela viam eram familiares, as bocas eram aquelas que protestavam em sua mente, as mesmas que a advertiam sobre ele. Seu corpo foi perdendo a sensibilidade, até que fechou seus olhos e adormeceu ao som de uma música alegre que vinha de longe. Lá dentro na casa, uma moça de cabelos dourados de longos cachos, cobria a falsa pele do vestido que ficara no porão. Recebia com um lindo sorriso a aliança de amor eterno em seu dedo. Ele então a puxou e percorreram o porão e depois o corredor dos quadros, rumo a sala, onde a música os aguardava para uma longa dança. Na parede do corredor, um novo quadro, onde uma moça, de semblante triste, estava sentada de frente a um cavalete, onde tentava pintar as hortênsias que brotavam ali.

segunda-feira, 19 de março de 2012

Conto da meia noite

Alguns postes iluminavam a rua, junto às luzes de carros que passavam por ali. O latido de um cachorro ecoava pelo ar, enquanto ela estava sentada no ponto de ônibus; aguardando.

Seus cabelos negros e sujos estendiam-se até a cintura. Seu vestido branco, cheio de manchas amareladas, rasgos e lama na barra. Seus dedos percorriam á altura de seu rosto, onde ela parecia dedilhar as teclas de um piano visível somente para ela. Tudo que eu conseguia ouvir de seus lábios, eram inaudíveis tique, taque, uma imitação de um relógio.

Passamos alguns minutos sentados ao lado um do outro. O cachorro ainda latia. Um homem virava a esquina, e suavemente caminhava em direção ao ponto onde estávamos. Os olhos da garota estavam vazios, distantes. Seus lábios secos detalhavam sua aparência doentia. Sua pele era pálida demais e parecia quase translúcida em contraste com a luz da lua. Algumas gotas de chuva começavam a cair, e eu sabia que a qualquer momento teria de começar meu trabalho. Pigarreei alto, querendo chamar a atenção da garota. Com seu olhar perdido, ela procurou um pouco até que estranhamente conseguiu me localizar do seu lado. Então ela sussurrou algumas palavras:

Ainda não é a minha vez.

Então continuou a fixar seu olhar em algo distante, enquanto dedilhava o ar, como quem toca uma doce melodia. Novamente eu podia ouvir seus tiques e taques. O homem, então ao se aproximar mais, começou a apertar o peito. Sentia dor. Era intensa. Tentou se apoiar no poste e pedir ajuda a garota, que de alguma forma não podia ouvi-lo. Depois de alguns minutos sufocado em dor, ele caiu. Seu coração parara. Foi então que o ônibus chegou. Levantei-me, junto com o passageiro que chegara ali e subimos, enquanto a garota permanecia em seu lugar. Inerte. Fiquei observando sua expressão pela janela, enquanto o ônibus partia.

Já passava da meia noite, e lá estava eu novamente, esperando pelo ônibus no mesmo ponto; na mesma rua. O cachorro latia insistentemente na minha direção, embora estivesse do outro lado da rua. Dizem que animais são sensíveis a coisas que os humanos não podem ver. Enquanto aguardava novamente, observei a mesma figura pálida ao meu lado. Se não fosse outra circunstância, eu teria me assustado. A garota parecia ter desistido de seu piano imaginário. Ela brincava com as rendas de seu vestido. Observava atentamente os buraquinhos que formavam desenhos simétricos ao longo da saia. Suas unhas estavam sujas e quebradas. Seus pés descalços e os cabelos mais emaranhados que antes. Apesar de tudo, ela prosseguia com sua imitação rouca dos ponteiros do relógio. Passaram-se alguns minutos até que uma ambulância que corria a toda velocidade, passou por nós. Ao passar em frente ao ponto onde estávamos, apareceu do nada uma garotinha por detrás, com seus quase doze anos. Enquanto a ambulância já ia longe, ela atravessava suavemente a rua até que se juntou a nós. As gotas de chuva tinham parado ao que parecia, foi então que o ônibus apareceu novamente. A menina do vestido branco parara com sua imitação e novamente sussurrou.

─Ainda não, mas falta pouco agora.

E então prosseguiu com sua ocupação anterior. O cachorro agora latia freneticamente, e antes que eu percebesse, o ônibus havia parado na minha frente outra vez. Novamente era hora de trabalhar. Subimos os dois então, enquanto via a pálida menina, ficando para trás. Ela tremia. Fiquei observando-a a distância até que não mais pude vê-la.

Na terceira noite, fazia muito frio. A chuva estava fina, porém era acompanhada de um vento cortante. Eu não me incomodava muito com o frio. Já se passava das duas da manhã, e lá estava ela novamente. Seus tiques e taques, eram interrompidos vez ou outra pela falha em sua respiração. Seus dedos dessa vez procuravam em que se segurar. Ela parecia fraca demais. Uma mulher então andava rápido demais pela rua. Parecia fugir de alguém. Logo em seguida pude entender por que. Um homem encapuzado se aproximava dela. Quando estava próximo demais, conseguiu puxar a alça da bolsa dela. A mulher estava apavorada. Eles se encontravam do outro lado da rua. Enquanto ele abria a bolsa, ela se ajoelhava chorando, pedindo proteção a Deus. Pegou então o dinheiro na carteira, um telefone e jogou a bolsa no chão, enquanto com uma das mãos, apontava uma arma para a cabeça da mulher. Seu olhar parou na menina do vestido branco ao meu lado. Ao vê-la, optou por correr, deixando a mulher no chão, no meio da rua, em frente a nossa parada, aos prantos, soluçando. Seu coração estava disparado. Recolheu então suas coisas, e correu pelo lado oposto. Quando virou a esquina me dirigi à garota, que quase não respirava mais e disse:

─ Involuntariamente você salvou uma vida hoje, não é mesmo?

─ Fiz exatamente... ─Puxou o ar para seus pulmões com toda força que ainda tinha─... O contrário do que você faz.

─ Ele pensou que você era uma assombração. ─ Falei quase num riso.

─Porque eu posso ver e ouvir você agora?

─ Porque finalmente é sua vez de pegar o ônibus comigo. Chega de sofrimento.

─ Eu vou para casa agor...

Precipitei-me ao tocar seu braço impossibilitando sua última fala.

Ao meu lado agora, uma linda garota de vestido branco, com olhos claros, cabelos brilhantes mãos macias e limpas, sem sinal de sofrimento me olhava.

─A morte não é tão ruim quanto parece.

Olhou para o corpo frio e vazio no banco do ponto de ônibus. Seu olhar era de alegria e compaixão.

─ Quero ir para casa.

─ Vamos então. O ônibus se aproxima.

Ele parou novamente para que pudéssemos subir. Ela sentou-se então na janela, observando o que ficava para trás. Enquanto eu me despedia daquela noite, ela se despedia daquela vida.

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

O Fim

Era tudo leve, silencioso. Tudo era água ao redor. Não havia dor, nem gritos de medo. O pavor nos olhos das pessoas... Nada de guerra, nada mais... Só silêncio. E a luz distante...

De repente tudo estava frio, as gotas da chuva caíam no meu rosto, fazendo escorregar para os lados alguns fios de cabelo. Minha garganta ardia, e meu corpo experimentava o frio e a dormência. Meus pés arrastavam-se pelo chão, perdidos. Quando todo meu corpo tocou o chão, senti meus lábios sendo tocados por outros desconhecidos. A água saía, o coração voltava a bater quase que normalmente. Depois de alguns minutos, pude abrir ainda com dificuldade os meus olhos. Estavam doloridos e ardiam também. Então vi a silhueta dele, e seus olhos me observavam. Sua expressão era de alívio.

Consegue andar? Ele me perguntou enquanto olhava para os lados a procura de algo que eu não entendia.

Eu sonhei que eu estava sendo perseguida por monstros e...

Vamos, nós não podemos ficar aqui parados.

Ele então me ajudou a levantar, e passando um dos meus braços ao redor do seu pescoço, começamos a andar, um pouco mais rápido do que eu poderia naquele momento. A todo instante ele olhava para os lados a procura de alguma coisa.

Você não sonhou se é isso que quer saber. Já está quase amanhecendo e eles vão voltar a atacar. Como você foi parar no rio?

Fugindo, acho? É real então?

Quisera eu poder dizer que não, mas é bem real. E eles estão se multiplicando ao que parece. Eles pegaram alguém que você conhece?

Meu coração deu uma fisgada dolorosa naquele momento.

Todos que eu conhecia. Minha família, amigos e...

Eu sei, eu também! ─ Ele suspirou alto, como se colocasse toda a dor para fora. ─A propósito, meu nome é Tom.

Julia. ─ Disse baixinho, a garganta ainda doía. Sinto muito pela sua perda.

─ Obrigado. Nós já estamos chegando.

─Onde nós vamos?

─ Nos abrigar. Temos que ficar longe dessas coisas. Tem um grupo que está escondido na saída da cidade, esperando por sobreviventes para poder sair daqui.

Andamos por mais alguns minutos. Estranhamente eu já me sentia melhor para caminhar. Um grupo de umas trinta pessoas estava escondido em um antigo ferro velho. Crianças, homens, mulheres... Gente com o medo estampado nos olhos. Muitos estavam ao redor de uma fogueira, alguns improvisavam comida para os mais novos.

─ Acabou. Todos estão sem vida. Só encontrei a Julia, no rio aqui perto. Estava se afogando, mas consegui reanimá-la. Partimos em uma hora. Espero que todos estejam preparados.

Tom me levou para perto da fogueira. A água do rio estava fria demais, e todo meu corpo tremia convulsivamente. Ele então pegou um cobertor e o passou envolta dos meus ombros.

─ Vou ver se todos estão se preparando. Tente se recuperar um pouco, nossa viagem será longa.

Assenti com a cabeça, estava frio demais até para falar. Minha boca tremia.

Depois de alguns minutos eu já me sentia mais forte e confortável, mas ainda sim tentava reprimir meus pensamentos, com medo que eles me levassem a lembrar da última cena que vi antes de me afogar. Uma mulher sentou ao meu lado, em cima da lataria de um chevy. Era loira, olhos escuros, magra. Seu rosto estava coberto de fuligem, e haviam marcas de lágrimas desenhadas em suas bochechas. Ela então me olhou, esboçando um sorriso daqueles que agente mostra procurando forças. Resolvi então fazer algumas perguntas.

─Você sabe o que eram aquelas coisas?

─Não sei o nome, mas sei o que estão fazendo. Eu acabei de perder meu marido, sabe. Estávamos em lua de mel.

Olhei então sua mão esquerda, e lá estava uma linda aliança dourada, com algumas pedrinhas que brilhavam discretamente.

─Sinto muito mesmo.

─ Ele me salvou. Estávamos fugindo. Essas coisas apareceram no hotel. Ele se colocou na minha frente, na hora que apontaram aquela coisa na minha direção. Então a coisa arrancou algo brilhante, ofuscante eu diria. Do peito do meu marido. Ele ficou no chão, ainda respirava, mas seus olhos tinham perdido o brilho e não havia mais vida ali. Então quando a coisa se aproximou, achei que seria minha vez, mas ela pegou o objeto que brilhava no ar, exatamente onde Harold estava de pé, e o engoliu. Foi a oportunidade que tive de sair correndo. Também me encontrei com Tom, ele me trouxe.

─ Seu marido estava vivo?

─ Seu corpo sim, mas ele já não estava mais lá.

─ Essas coisas se alimentam do coração dos amantes Julia, ─ Disse Tom, se aproximando­─ das pessoas que amam. Estão fazendo com que o amor entre em extinção, por assim dizer.

─ Mas, não existe como lutar? Matar essas coisas? Não poderemos fugir pra sempre.

─ Eles são muitos, e tem suas armas. Nós somos poucos e estamos sós. Não há como lutar, é uma guerra perdida para nós. O que podemos fazer é fugir, e com sorte evitar que se alimentem do amor de outras pessoas.

─ Eu sei o que eles são. ─ Falou uma garota atrás de nós, seus cabelos eram negros e curtos, seus olhos eram azuis e ela era baixinha. Seu nome era Anne. Até mesmo Tom parou para ouvir o que ela tinha a dizer. ─ Eles são pessoas como nós. Seres humanos. Só que nunca conheceram o amor, nunca o souberam viver, sentir. Por isso se alimenta do das pessoas.

─Aquelas coisas não tinham como ser humanas, não é possível que sejam. ─ Disse Tom.

─ A falta de amor os consumiu, tornando-os esses monstros. No final, é engraçado como o próprio ser humano é capaz de destruir tudo, até o amor.

Passamos algum tempo refletindo sobre o que Anne havia nos contado. Era difícil que acreditar que tudo acabaria pelas nossas próprias mãos. A falta de amor. Era doloroso pensar nisso. Pensar que o mundo que conhecíamos acabaria habitado somente por criaturas sem amor, sem alma.

De repente ouvimos um grito de pavor vindo por trás de onde estávamos.

─ CORRA TOM! ESTÃO VINDO! CORRA!

Todos estavam correndo, muitos gritavam. Eram seis e estavam vindo e ainda não tinha amanhecido. Começamos a fugir, a vagar sem direção. Eu não conseguia correr, mas andava o mais rápido que podia. De repente percebi que era ridículo fugir, e que talvez algo pudesse ser feito. Talvez eu pudesse fazer algo. Então entrando em uma campina, onde ainda dava para ver várias pessoas buscando uma rota melhor para a fuga, foi que eu decidi parar. Respirei fundo e olhei para trás. Os seis monstros se encontravam ali. Um deles estava pronto para atacar Tom, quando gritei:

PARA!

Os seis pararam o que estavam fazendo e olharam para mim, sem entender. Percebi que seus lábios eram escuros, seus olhos, negros por completo, a pele translúcida, sem vida. Eles seguravam armas, com um cano da espessura de um braço. Delas, saíam fumaça preta. O sol saía no horizonte, e eles esperavam que eu continuasse.

─ Parem com isso! ─ Eu disse─ não precisa ser assim. Todos nós podemos ajudar vocês. Vocês não precisam arrancar a força o amor das pessoas, não precisam se alimentar dele. As coisas não precisam ser assim.

Eles pareciam me ouvir atentamente, porém não falavam nada. As pessoas ao redor estavam incrédulas, suas expressões eram de desespero e confusão. Um deles levantou a arma e a apontou para minha direção.

─Por favor, olha, confia em mim. Nós podemos mudar isso. Por favor, não façam mais isso.

A arma então foi abaixada, e antes que eu pudesse sentir alívio, ela foi apontada para o peito de Tom, e depois do estrondo, seu coração pairava no ar, com uma luz intensa iluminando o lugar. Os seis começaram o extermínio de todos ali. Por algum motivo eu não corri não me mexi. Enquanto todos caíam no chão, eu via seus olhos perdendo o brilho da vida. Não havia mais o que fazer. Nós estávamos perdendo. Os amantes estavam perdendo. Depois de um tempo houve silêncio. Todos estavam no chão. Não havia mais ninguém, ninguém além de mim mesma e as criaturas. Elas então me encararam. Um deles deu um sorriso frio, tão frio que era insuportável de olhar. Abaixei então minha cabeça, e coloquei minhas mãos em frente ao peito. Não que fosse adiantar ou impedir o que viria, mas eu pelo menos sentiria meu coração pulsante uma vez mais. Fechei meus olhos e pedi em oração pela humanidade. Então veio um estouro, depois uma luz ofuscante e nada mais.

sábado, 28 de maio de 2011

Perspectiva

Estava sentada, olhando fixamente o altar da igrejinha. Lindas flores e rosas adornavam cada canto da capela. Um tapete vermelho no corredor com algumas pétalas brancas espalhadas. Ela estava no primeiro banco. Tinha em suas mãos um lindo arranjo de rosas vermelhas que contrastava com seu vestido branco. Lágrimas manchavam a seda pura que a vestia. Ela ainda buscava lá dentro, alguma reação que a fizesse sair daquele lugar, depois da cerimônia desastrosa na qual seu noivo a tinha deixado momentos antes, sem qualquer explicação. Respirar estava difícil. A dor emanava dela de forma incontrolável. Banhava cada espaço de seus pensamentos com amargura. Ele simplesmente a deixara ali. Depois da cena, alguns convidados vieram ter com ela, consolando-a. Ela simplesmente se sentou. Depois de inúmeras tentativas de seus parentes de a levarem embora, todos se deram conta que o melhor era ir embora. Ela ainda ouviu um garotinho reclamando baixo, que não haveria mais festa. Minutos passados então e ela estava só. A pequena capela ficava á beira de uma rodovia, no meio do nada. Tinha sido construída pelo bisavô do homem que a abandonara no altar. Como algo assim poderia ter acontecido? Naquela manhã, tudo eram certeza e felicidade. As cores faziam algum sentido. A seda, as músicas, as pétalas faziam sentido. Agora tudo era cinza e triste. Tudo era um borrão, distorcido. E não faziam sentido. Após algum tempo, levantou-se. Vagueou pelos cantos da capela. Fez orações, pediu força. Pegou as flores deixou sobre o altar. E então fez o que mais ninguém podia fazer por ela. Decidiu.
Vestiu seu bolero de renda, para se proteger do frio que fazia e caminhou no sentido contrário do corredor, sem olhar para trás. Percebeu que fantasiar era bom, mas só na medida certa. E que ter os pés no chão agora era essencial. Com o dorso da mão, enxugou as últimas lágrimas que escorreram. Sujou suas luvas com a maquiagem e pela vidraça, viu que seu rosto também era um borrão imperfeito e sem vida. Só que o que a movia agora era a própria expressão no rosto. Era a fisionomia de quem tinha decidido. Abriu a porta da Igreja, que rangeu vertiginosamente. A estrada estava deserta. Era a hora do crepúsculo. O céu também era um borrão e não fazia sentido algum. Começou então a andar. Não sabia para onde, nem porque fazia aquilo, mas ela já tinha decidido. No fundo ela sabia. O encostamento era ladeado de cascalho. Retirou então seus sapatos de salto fino, e jogou-os longe. Fez o mesmo com os arranjos no cabelo e então continuou a caminhar. Ainda se sentia pesada de amargura, mas algo havia mudado desde que se levantara do banco. Resolveu que não fazia mais sentido pensar nele e em tudo que acontecera, embora a dor estivesse ali. Viu então aquele coelho branco no meio da estrada, segurando o mesmo relógio de bolso e com seu colete elegante. Sua expressão era preocupada, parecia aflito. Ela então se aproximou dele, e em tom de solidariedade, e sussurrou:


─ Não adianta ficar desse jeito, é só se decidir. Vai ficar mais leve.

Os olhos dele estavam fixos nos dela. Ele então se levantou, jogou fora o relógio e correu pelas terras que a estrada cortava. Ela então continuou andando, recusando-se a ficar triste de novo. Gotas de chuva começavam a cair. Começou então a sorrir, pois cada gota de chuva que caía, levava um pouco das coisas ruins que tentavam consumi-la. Então deu um rodopio de felicidade, depois outro e mais um, logo estava gargalhando. Estava leve de novo. Saiu dançando pela estrada deserta, seu vestido acompanhava o ritmo do corpo. Então ela parou. Á sua frente, uma velha de aparência grotesca, segurava uma cesta cheia de maçãs. Seu manto negro a protegia da água. A velha sorriu maliciosamente para ela e ofereceu uma maçã.

─ Não preciso disso. Eu já me decidi.

Então a velha largou a cesta no chão e comeu a própria maçã. Ela então já ia andando, mas deu uma olhadela rápida com o canto do olho, o suficiente para vera velha caída no chão. Depois de algumas horas andando na chuva, ela finalmente avistou um carro estacionado. Correu até ele e observou que sobre o capô tinha uma caixinha dourada. Ao abri-la, encontrou em seu interior as chaves que a levariam para longe dali. Destrancou a porta do carro, colocou a chave na ignição e estava pronta para ir, antes deu uma última olhada pelo retrovisor e percebeu o quanto tinha deixado para trás. Ficou feliz, pois tinha se decidido. Tinha se decidido a não mais sofrer pelo que não podia ser desfeito, e mais feliz ainda por não ter entrado no mundo de fantasias com o coelho, a fim de esquecer seus problemas e tampouco usado de venenos para finalizar sua dor. A chuva resolvera tudo por ela. Lavara cada pedaço da sua alma. Ela estava pronta para prosseguir, pois sabia que, para uma alma solitária, ela ainda teria bons momentos.

sexta-feira, 13 de maio de 2011

Irreal realidade

Todos os dias ela acordava com uma profunda tristeza em seu coração. Acordar era seu grande problema. Após abrir os olhos, ficava um pouco mais, fitando as telhas do quarto, agarrando-se a cada segundo de seu sonho feliz. Quando então percebia que já não podia mais se demorar ali, levantava-se e encarava outro dia. O sol ainda estava nascendo, o céu mesclado com as cores da noite que ia e com as cores da manhã que logo chegaria ali. Havia pessoas na casa, mas era como se estivesse só. Ela sempre se sentia só. Era mais um triste dia de trabalho. Deu alguns passos em direção ao banheiro. Sempre que entrava no cubículo, abria seu armário, pegava suas coisas e escovava os dentes. Sempre de olhos fechados. Não que quisesse dormir mais, era só para não ter de ficar de frente para a própria imagem refletida no espelho. Não gostava de espelhos. Eles eram juízes impiedosos, que sempre a acusavam, sentenciando-a toda vez que o encarava. Seus olhos tinham a mesma cor dos olhos de alguém que ela não conheceu, seus cabelos eram escuros; ela os preferia assim. Não era bonita. Simplesmente não se encaixava em lugar nenhum. Depois de um banho e de alguns minutos se preparando, ela saiu de casa pronta para mais um dia. Ainda se lembrando da linda moça, talvez da mesma idade da sua, correndo pelas ruas chuvosas de um lugar que sempre quisera visitar. Ela ia ao encontro de um homem sorridente. Ela corria até chegar onde ele estava. Seus cabelos iam a onde o vento os empurrava. Ele estendia sua mão na direção que ela vinha, até que ela pudesse tocá-la. Então, agarrada ao braço do rapaz, eles saiam juntos caminhando, felizes, conversando algo que ela não podia ouvir. Toda vez, era um sonho diferente, mas sempre os mesmos personagens desconhecidos. Ao contrário dos seus dias, sempre iguais. Já estava no mesmo assento do ônibus que todos os dias a levava para o trabalho. Revirava a bolsa a procura de seus fones de ouvido. Até as músicas já a aborreciam. Sempre as mesmas. Não sabia nem dizer o porquê não renovava suas listas de música. Ela ia então observando as ruas conhecidas, imaginando como seria se sua vida fosse diferente. Se fosse outra pessoa, em um lugar distante, e feliz. Como a moça do sonho. Sua vida beirava a melancolia. Ás vezes, sentada ali, ela pensava no absurdo que era a sua existência. Era doloroso demais ficar só, mesmo depois de tanto tempo. Nunca tinha tempo para outra coisa, do que seus pensamentos. Depois de um longo dia cansativo e solitário, voltava para casa. Ela podia ver as pessoas ao seu redor, mas era como se não existissem. Era como se fossem pinturas se movimentando nas paredes ao seu redor. Borrões, nada mais que isso. O que sabia era que estava sozinha e sempre estaria. Sua única companhia era o vazio imenso que a cobria. Não sentia gosto ao comer, prazer ao beber, os livros que tinha estavam todos em branco. Os ponteiros do relógio nunca saíam do lugar. Até que sempre chegava aquela parte do dia em que tudo desmoronava. Ela se deitava então, e chorava convulsivamente, até que esbarrava na beirada da cama. Então algo como um vazio começava a sugá-la e ela não via como fazer para impedir de ser arrastada para o nada. De repente ela estava no vácuo, e então, não estava mais, não existia mais. Depois o impacto.

Giulia, você está bem? ─ Perguntou ele ao me acordar com uma expressão preocupada.
─ Estou sim, foi só aquele sonho outra vez. ¬─ Falei olhando o relógio. Eram 4:35 da manhã.
─ O sonho com a garota do ônibus? ─ Perguntou ele confuso
─ Esse, mesmo. Sempre o mesmo. Ela sonhou conosco outra vez...