Contos para noites de chuva
Contos criados por Débora Brandão.
domingo, 11 de novembro de 2012
Brinquedo quebrado
segunda-feira, 19 de março de 2012
Conto da meia noite
Alguns postes iluminavam a rua, junto às luzes de carros que passavam por ali. O latido de um cachorro ecoava pelo ar, enquanto ela estava sentada no ponto de ônibus; aguardando.
Seus cabelos negros e sujos estendiam-se até a cintura. Seu vestido branco, cheio de manchas amareladas, rasgos e lama na barra. Seus dedos percorriam á altura de seu rosto, onde ela parecia dedilhar as teclas de um piano visível somente para ela. Tudo que eu conseguia ouvir de seus lábios, eram inaudíveis tique, taque, uma imitação de um relógio.
Passamos alguns minutos sentados ao lado um do outro. O cachorro ainda latia. Um homem virava a esquina, e suavemente caminhava em direção ao ponto onde estávamos. Os olhos da garota estavam vazios, distantes. Seus lábios secos detalhavam sua aparência doentia. Sua pele era pálida demais e parecia quase translúcida em contraste com a luz da lua. Algumas gotas de chuva começavam a cair, e eu sabia que a qualquer momento teria de começar meu trabalho. Pigarreei alto, querendo chamar a atenção da garota. Com seu olhar perdido, ela procurou um pouco até que estranhamente conseguiu me localizar do seu lado. Então ela sussurrou algumas palavras:
─ Ainda não é a minha vez.
Então continuou a fixar seu olhar em algo distante, enquanto dedilhava o ar, como quem toca uma doce melodia. Novamente eu podia ouvir seus tiques e taques. O homem, então ao se aproximar mais, começou a apertar o peito. Sentia dor. Era intensa. Tentou se apoiar no poste e pedir ajuda a garota, que de alguma forma não podia ouvi-lo. Depois de alguns minutos sufocado em dor, ele caiu. Seu coração parara. Foi então que o ônibus chegou. Levantei-me, junto com o passageiro que chegara ali e subimos, enquanto a garota permanecia em seu lugar. Inerte. Fiquei observando sua expressão pela janela, enquanto o ônibus partia.
Já passava da meia noite, e lá estava eu novamente, esperando pelo ônibus no mesmo ponto; na mesma rua. O cachorro latia insistentemente na minha direção, embora estivesse do outro lado da rua. Dizem que animais são sensíveis a coisas que os humanos não podem ver. Enquanto aguardava novamente, observei a mesma figura pálida ao meu lado. Se não fosse outra circunstância, eu teria me assustado. A garota parecia ter desistido de seu piano imaginário. Ela brincava com as rendas de seu vestido. Observava atentamente os buraquinhos que formavam desenhos simétricos ao longo da saia. Suas unhas estavam sujas e quebradas. Seus pés descalços e os cabelos mais emaranhados que antes. Apesar de tudo, ela prosseguia com sua imitação rouca dos ponteiros do relógio. Passaram-se alguns minutos até que uma ambulância que corria a toda velocidade, passou por nós. Ao passar em frente ao ponto onde estávamos, apareceu do nada uma garotinha por detrás, com seus quase doze anos. Enquanto a ambulância já ia longe, ela atravessava suavemente a rua até que se juntou a nós. As gotas de chuva tinham parado ao que parecia, foi então que o ônibus apareceu novamente. A menina do vestido branco parara com sua imitação e novamente sussurrou.
─Ainda não, mas falta pouco agora.
E então prosseguiu com sua ocupação anterior. O cachorro agora latia freneticamente, e antes que eu percebesse, o ônibus havia parado na minha frente outra vez. Novamente era hora de trabalhar. Subimos os dois então, enquanto via a pálida menina, ficando para trás. Ela tremia. Fiquei observando-a a distância até que não mais pude vê-la.
Na terceira noite, fazia muito frio. A chuva estava fina, porém era acompanhada de um vento cortante. Eu não me incomodava muito com o frio. Já se passava das duas da manhã, e lá estava ela novamente. Seus tiques e taques, eram interrompidos vez ou outra pela falha em sua respiração. Seus dedos dessa vez procuravam em que se segurar. Ela parecia fraca demais. Uma mulher então andava rápido demais pela rua. Parecia fugir de alguém. Logo em seguida pude entender por que. Um homem encapuzado se aproximava dela. Quando estava próximo demais, conseguiu puxar a alça da bolsa dela. A mulher estava apavorada. Eles se encontravam do outro lado da rua. Enquanto ele abria a bolsa, ela se ajoelhava chorando, pedindo proteção a Deus. Pegou então o dinheiro na carteira, um telefone e jogou a bolsa no chão, enquanto com uma das mãos, apontava uma arma para a cabeça da mulher. Seu olhar parou na menina do vestido branco ao meu lado. Ao vê-la, optou por correr, deixando a mulher no chão, no meio da rua, em frente a nossa parada, aos prantos, soluçando. Seu coração estava disparado. Recolheu então suas coisas, e correu pelo lado oposto. Quando virou a esquina me dirigi à garota, que quase não respirava mais e disse:
─ Involuntariamente você salvou uma vida hoje, não é mesmo?
─ Fiz exatamente... ─Puxou o ar para seus pulmões com toda força que ainda tinha─... O contrário do que você faz.
─ Ele pensou que você era uma assombração. ─ Falei quase num riso.
─Porque eu posso ver e ouvir você agora?
─ Porque finalmente é sua vez de pegar o ônibus comigo. Chega de sofrimento.
─ Eu vou para casa agor...
Precipitei-me ao tocar seu braço impossibilitando sua última fala.
Ao meu lado agora, uma linda garota de vestido branco, com olhos claros, cabelos brilhantes mãos macias e limpas, sem sinal de sofrimento me olhava.
─A morte não é tão ruim quanto parece.
Olhou para o corpo frio e vazio no banco do ponto de ônibus. Seu olhar era de alegria e compaixão.
─ Quero ir para casa.
─ Vamos então. O ônibus se aproxima.
Ele parou novamente para que pudéssemos subir. Ela sentou-se então na janela, observando o que ficava para trás. Enquanto eu me despedia daquela noite, ela se despedia daquela vida.
quarta-feira, 18 de janeiro de 2012
O Fim
Era tudo leve, silencioso. Tudo era água ao redor. Não havia dor, nem gritos de medo. O pavor nos olhos das pessoas... Nada de guerra, nada mais... Só silêncio. E a luz distante...
De repente tudo estava frio, as gotas da chuva caíam no meu rosto, fazendo escorregar para os lados alguns fios de cabelo. Minha garganta ardia, e meu corpo experimentava o frio e a dormência. Meus pés arrastavam-se pelo chão, perdidos. Quando todo meu corpo tocou o chão, senti meus lábios sendo tocados por outros desconhecidos. A água saía, o coração voltava a bater quase que normalmente. Depois de alguns minutos, pude abrir ainda com dificuldade os meus olhos. Estavam doloridos e ardiam também. Então vi a silhueta dele, e seus olhos me observavam. Sua expressão era de alívio.
─ Consegue andar? ─ Ele me perguntou enquanto olhava para os lados a procura de algo que eu não entendia.
─Eu sonhei que eu estava sendo perseguida por monstros e...
─Vamos, nós não podemos ficar aqui parados.
Ele então me ajudou a levantar, e passando um dos meus braços ao redor do seu pescoço, começamos a andar, um pouco mais rápido do que eu poderia naquele momento. A todo instante ele olhava para os lados a procura de alguma coisa.
─Você não sonhou se é isso que quer saber. Já está quase amanhecendo e eles vão voltar a atacar. Como você foi parar no rio?
─Fugindo, acho? É real então?
─Quisera eu poder dizer que não, mas é bem real. E eles estão se multiplicando ao que parece. Eles pegaram alguém que você conhece?
Meu coração deu uma fisgada dolorosa naquele momento.
─Todos que eu conhecia. Minha família, amigos e...
─Eu sei, eu também! ─ Ele suspirou alto, como se colocasse toda a dor para fora. ─A propósito, meu nome é Tom.
─ Julia. ─ Disse baixinho, a garganta ainda doía. Sinto muito pela sua perda.
─ Obrigado. Nós já estamos chegando.
─Onde nós vamos?
─ Nos abrigar. Temos que ficar longe dessas coisas. Tem um grupo que está escondido na saída da cidade, esperando por sobreviventes para poder sair daqui.
Andamos por mais alguns minutos. Estranhamente eu já me sentia melhor para caminhar. Um grupo de umas trinta pessoas estava escondido em um antigo ferro velho. Crianças, homens, mulheres... Gente com o medo estampado nos olhos. Muitos estavam ao redor de uma fogueira, alguns improvisavam comida para os mais novos.
─ Acabou. Todos estão sem vida. Só encontrei a Julia, no rio aqui perto. Estava se afogando, mas consegui reanimá-la. Partimos em uma hora. Espero que todos estejam preparados.
Tom me levou para perto da fogueira. A água do rio estava fria demais, e todo meu corpo tremia convulsivamente. Ele então pegou um cobertor e o passou envolta dos meus ombros.
─ Vou ver se todos estão se preparando. Tente se recuperar um pouco, nossa viagem será longa.
Assenti com a cabeça, estava frio demais até para falar. Minha boca tremia.
Depois de alguns minutos eu já me sentia mais forte e confortável, mas ainda sim tentava reprimir meus pensamentos, com medo que eles me levassem a lembrar da última cena que vi antes de me afogar. Uma mulher sentou ao meu lado, em cima da lataria de um chevy. Era loira, olhos escuros, magra. Seu rosto estava coberto de fuligem, e haviam marcas de lágrimas desenhadas em suas bochechas. Ela então me olhou, esboçando um sorriso daqueles que agente mostra procurando forças. Resolvi então fazer algumas perguntas.
─Você sabe o que eram aquelas coisas?
─Não sei o nome, mas sei o que estão fazendo. Eu acabei de perder meu marido, sabe. Estávamos em lua de mel.
Olhei então sua mão esquerda, e lá estava uma linda aliança dourada, com algumas pedrinhas que brilhavam discretamente.
─Sinto muito mesmo.
─ Ele me salvou. Estávamos fugindo. Essas coisas apareceram no hotel. Ele se colocou na minha frente, na hora que apontaram aquela coisa na minha direção. Então a coisa arrancou algo brilhante, ofuscante eu diria. Do peito do meu marido. Ele ficou no chão, ainda respirava, mas seus olhos tinham perdido o brilho e não havia mais vida ali. Então quando a coisa se aproximou, achei que seria minha vez, mas ela pegou o objeto que brilhava no ar, exatamente onde Harold estava de pé, e o engoliu. Foi a oportunidade que tive de sair correndo. Também me encontrei com Tom, ele me trouxe.
─ Seu marido estava vivo?
─ Seu corpo sim, mas ele já não estava mais lá.
─ Essas coisas se alimentam do coração dos amantes Julia, ─ Disse Tom, se aproximando─ das pessoas que amam. Estão fazendo com que o amor entre em extinção, por assim dizer.
─ Mas, não existe como lutar? Matar essas coisas? Não poderemos fugir pra sempre.
─ Eles são muitos, e tem suas armas. Nós somos poucos e estamos sós. Não há como lutar, é uma guerra perdida para nós. O que podemos fazer é fugir, e com sorte evitar que se alimentem do amor de outras pessoas.
─ Eu sei o que eles são. ─ Falou uma garota atrás de nós, seus cabelos eram negros e curtos, seus olhos eram azuis e ela era baixinha. Seu nome era Anne. Até mesmo Tom parou para ouvir o que ela tinha a dizer. ─ Eles são pessoas como nós. Seres humanos. Só que nunca conheceram o amor, nunca o souberam viver, sentir. Por isso se alimenta do das pessoas.
─Aquelas coisas não tinham como ser humanas, não é possível que sejam. ─ Disse Tom.
─ A falta de amor os consumiu, tornando-os esses monstros. No final, é engraçado como o próprio ser humano é capaz de destruir tudo, até o amor.
Passamos algum tempo refletindo sobre o que Anne havia nos contado. Era difícil que acreditar que tudo acabaria pelas nossas próprias mãos. A falta de amor. Era doloroso pensar nisso. Pensar que o mundo que conhecíamos acabaria habitado somente por criaturas sem amor, sem alma.
De repente ouvimos um grito de pavor vindo por trás de onde estávamos.
─ CORRA TOM! ESTÃO VINDO! CORRA!
Todos estavam correndo, muitos gritavam. Eram seis e estavam vindo e ainda não tinha amanhecido. Começamos a fugir, a vagar sem direção. Eu não conseguia correr, mas andava o mais rápido que podia. De repente percebi que era ridículo fugir, e que talvez algo pudesse ser feito. Talvez eu pudesse fazer algo. Então entrando em uma campina, onde ainda dava para ver várias pessoas buscando uma rota melhor para a fuga, foi que eu decidi parar. Respirei fundo e olhei para trás. Os seis monstros se encontravam ali. Um deles estava pronto para atacar Tom, quando gritei:
─ PARA!
Os seis pararam o que estavam fazendo e olharam para mim, sem entender. Percebi que seus lábios eram escuros, seus olhos, negros por completo, a pele translúcida, sem vida. Eles seguravam armas, com um cano da espessura de um braço. Delas, saíam fumaça preta. O sol saía no horizonte, e eles esperavam que eu continuasse.
─ Parem com isso! ─ Eu disse─ não precisa ser assim. Todos nós podemos ajudar vocês. Vocês não precisam arrancar a força o amor das pessoas, não precisam se alimentar dele. As coisas não precisam ser assim.
Eles pareciam me ouvir atentamente, porém não falavam nada. As pessoas ao redor estavam incrédulas, suas expressões eram de desespero e confusão. Um deles levantou a arma e a apontou para minha direção.
─Por favor, olha, confia em mim. Nós podemos mudar isso. Por favor, não façam mais isso.
A arma então foi abaixada, e antes que eu pudesse sentir alívio, ela foi apontada para o peito de Tom, e depois do estrondo, seu coração pairava no ar, com uma luz intensa iluminando o lugar. Os seis começaram o extermínio de todos ali. Por algum motivo eu não corri não me mexi. Enquanto todos caíam no chão, eu via seus olhos perdendo o brilho da vida. Não havia mais o que fazer. Nós estávamos perdendo. Os amantes estavam perdendo. Depois de um tempo houve silêncio. Todos estavam no chão. Não havia mais ninguém, ninguém além de mim mesma e as criaturas. Elas então me encararam. Um deles deu um sorriso frio, tão frio que era insuportável de olhar. Abaixei então minha cabeça, e coloquei minhas mãos em frente ao peito. Não que fosse adiantar ou impedir o que viria, mas eu pelo menos sentiria meu coração pulsante uma vez mais. Fechei meus olhos e pedi em oração pela humanidade. Então veio um estouro, depois uma luz ofuscante e nada mais.
sábado, 28 de maio de 2011
Perspectiva
Vestiu seu bolero de renda, para se proteger do frio que fazia e caminhou no sentido contrário do corredor, sem olhar para trás. Percebeu que fantasiar era bom, mas só na medida certa. E que ter os pés no chão agora era essencial. Com o dorso da mão, enxugou as últimas lágrimas que escorreram. Sujou suas luvas com a maquiagem e pela vidraça, viu que seu rosto também era um borrão imperfeito e sem vida. Só que o que a movia agora era a própria expressão no rosto. Era a fisionomia de quem tinha decidido. Abriu a porta da Igreja, que rangeu vertiginosamente. A estrada estava deserta. Era a hora do crepúsculo. O céu também era um borrão e não fazia sentido algum. Começou então a andar. Não sabia para onde, nem porque fazia aquilo, mas ela já tinha decidido. No fundo ela sabia. O encostamento era ladeado de cascalho. Retirou então seus sapatos de salto fino, e jogou-os longe. Fez o mesmo com os arranjos no cabelo e então continuou a caminhar. Ainda se sentia pesada de amargura, mas algo havia mudado desde que se levantara do banco. Resolveu que não fazia mais sentido pensar nele e em tudo que acontecera, embora a dor estivesse ali. Viu então aquele coelho branco no meio da estrada, segurando o mesmo relógio de bolso e com seu colete elegante. Sua expressão era preocupada, parecia aflito. Ela então se aproximou dele, e em tom de solidariedade, e sussurrou:
─ Não adianta ficar desse jeito, é só se decidir. Vai ficar mais leve.
Os olhos dele estavam fixos nos dela. Ele então se levantou, jogou fora o relógio e correu pelas terras que a estrada cortava. Ela então continuou andando, recusando-se a ficar triste de novo. Gotas de chuva começavam a cair. Começou então a sorrir, pois cada gota de chuva que caía, levava um pouco das coisas ruins que tentavam consumi-la. Então deu um rodopio de felicidade, depois outro e mais um, logo estava gargalhando. Estava leve de novo. Saiu dançando pela estrada deserta, seu vestido acompanhava o ritmo do corpo. Então ela parou. Á sua frente, uma velha de aparência grotesca, segurava uma cesta cheia de maçãs. Seu manto negro a protegia da água. A velha sorriu maliciosamente para ela e ofereceu uma maçã.
─ Não preciso disso. Eu já me decidi.
Então a velha largou a cesta no chão e comeu a própria maçã. Ela então já ia andando, mas deu uma olhadela rápida com o canto do olho, o suficiente para vera velha caída no chão. Depois de algumas horas andando na chuva, ela finalmente avistou um carro estacionado. Correu até ele e observou que sobre o capô tinha uma caixinha dourada. Ao abri-la, encontrou em seu interior as chaves que a levariam para longe dali. Destrancou a porta do carro, colocou a chave na ignição e estava pronta para ir, antes deu uma última olhada pelo retrovisor e percebeu o quanto tinha deixado para trás. Ficou feliz, pois tinha se decidido. Tinha se decidido a não mais sofrer pelo que não podia ser desfeito, e mais feliz ainda por não ter entrado no mundo de fantasias com o coelho, a fim de esquecer seus problemas e tampouco usado de venenos para finalizar sua dor. A chuva resolvera tudo por ela. Lavara cada pedaço da sua alma. Ela estava pronta para prosseguir, pois sabia que, para uma alma solitária, ela ainda teria bons momentos.
sexta-feira, 13 de maio de 2011
Irreal realidade
─ Giulia, você está bem? ─ Perguntou ele ao me acordar com uma expressão preocupada.
─ Estou sim, foi só aquele sonho outra vez. ¬─ Falei olhando o relógio. Eram 4:35 da manhã.
─ O sonho com a garota do ônibus? ─ Perguntou ele confuso
─ Esse, mesmo. Sempre o mesmo. Ela sonhou conosco outra vez...