domingo, 11 de novembro de 2012

Brinquedo quebrado


Ao acordar, deu-se conta de quem era e de todas as coisas que existiam. Ela era alguém.  Não de carne e osso, mas havia sido criada para fazer com que acreditassem nisso.  Quando abriu os olhos, viu pela primeira vez aquele que conhecia tão bem. Ela o sentia antes mesmo que desse conta de si mesma. Ele era seu criador, inventor, seu princípio, sua razão de ser. Observou atentamente o sorriso que roubava a cena de todo resto. Era um sorriso triunfante, jubiloso e egoísta, mas era lindo e hipnotizante, era mais que qualquer outra coisa que ela pudesse descrever. Delicadamente, as mãos dele encontraram as dela, dando um leve puxão, indicando que ela deveria acompanhá-lo. Enquanto a conduzia, começaram uma dança suave pelo porão. Essa sensação era boa, algo em seu peito ardia de leve. Ao rodopiarem, ele cantava freneticamente uma música desconhecida e ela, registrava cada pequeno traço do ambiente com curiosidade. Tudo girava em cores e cheiros. Todas as coisas ali eram novas, e ao mesmo tempo familiares. E isso era estranho para ela, estranho e bom.  Ela vestiu-se então de cetim, com uma saia linda que escondia várias camadas de tule. O corpete tinha cordões que trançavam em suas costas. Os sapatos de boneca tinham saltos não tão altos e a fivela que os fechava desfiava a fina meia que cobria a falsa pele. Luvas delicadas, uma faixa no cabelo preto perfeito, que descia até quase a altura dos quadris. Nem um fio estava fora do lugar, sua pele era lisa e branca, seus olhos artificialmente penetrantes e curiosos. Ela estava pronta e perfeita, assim como tinha sido projetada. Ao finalizar o ritual, ele puxou sua mão direita e nela colocou uma aliança, que ao contrário de tudo que usava, não era nada nova. Nela havia uma inscrição quase ilegível: Sempre fiel a você. A promessa eterna selada nos lábios frios e inertes.
Dias se seguiram de felicidade inesgotável. Passeios pelo parque, sorrisos, histórias, satisfação e porque não, amor. A casa era imensa. Passaram a se conhecer melhor, ele era só dedicação e ela afeto. Fizeram viagens, foram a Veneza, a Marselha, onde tiveram dias felizes. Depois de meses voltaram para casa, pois ele estava sempre dizendo algo a respeito de um novo projeto. Era um homem trabalhador e dedicado, todos os dias ele acordava antes das seis e se dirigia ao porão onde, se trancava. Só saía de lá tarde da noite, tempo para ele tomar banho e jantar. Ás vezes, ele tomava vinho em sua poltrona, enquanto desfrutava da presença dela, outras vezes, nas noites de lua cheia, iam para fora da imensa casa, e colocava-se a contemplar o céu, ele admirava a linda lua e ela o admirava. Quando o sol voltava, ele regressava ao seu mundo particular. Durante o dia, ele lá só saía na hora das refeições. Ela, sem companhia e sem muito o que fazer passava o dia observando cada canto da propriedade. As flores e plantas do jardim, os nomes dos autores dos inúmeros livros da estante do escritório. Nos corredores, várias pinturas de mulheres lindas, mas sempre com a mesma expressão triste no rosto. Ela não gostava do corredor. A cada vez que passava por ali, sentia-se observada por cada uma delas. Quando o sol se despedia, ele regressava ao seu encontro, onde ficavam juntos, sempre contando histórias ou simplesmente contando estrelas no céu.  E foi assim por um bom tempo.
Dois anos se passaram, os passeios diminuíram, as histórias acabaram e mais distante ele ficava. Já não era mais como antes. Os jantares eram cada vez menos freqüentes e os sorrisos eram raros. O que nunca mudava era a sensação ruim que sentia, se é que sentia, a cada vez que passava pelo corredor onde se encontravam os quadros. Um dia ao andar pela casa a procura de novas descobertas pela propriedade, escutou uma voz que a chamava. Achando que era dele, olhou para trás, mas nada viu além dos vários quadros em suas molduras douradas. Chegou próximo a tela de uma moça sentada em um jardim. Dentro dos olhos da moça viu o pânico e o alerta. Olhou para outro quadro, e o mesmo lhe ocorreu. Correu então sem mais olhar para trás, cerrou os ouvidos com as mãos para que não mais ouvisse os gritos de alerta que ecoavam em sua mente. Chegou à sala, fechando a porta atrás de si, e despencou-se sobre a poltrona de frente a lareira. Ela não sabia que sensação ruim era aquela, mas sabia que não era nada de bom. Quando fosse noite e ele retornasse, ela pediria para que retirasse os quadros dali. Talvez ela pudesse aprender pintura e quem sabe faria quadro alegre para colocar ali. Viu então um livro de capa bonita, sobre a mesa de centro, resolveu pegar e lê-lo. Era um livro bom, tão bom que quando percebeu, ele estava parado á sua frente, chamando-a para acompanhá-lo para jantar.  Ele jantava feliz, ainda não tinha tomado banho. Sua testa estava coberta de suor e fuligem. Ela estava sentada do outro lado da sala de jantar, com a postura perfeita, observando-o comer. Lembrou-se  então da história do livro e sorriu, era uma história realmente bonita e feliz. E foi pensando no livro que se lembrou do fato que a levara a chegar a ele. Começou a conversar então com ele sobre a ideia de poder quem sabe, aprender pintura. Ele largou seu talher surpreso com a proposta dela, perguntou o motivo de repentina ideia. Ela explicou da vertigem que os quadros lhe causavam. Ele baixou a cabeça, e disse que poderia ensiná-la. Agora que ele terminara seu projeto, poderia passar as tardes ensinando ela a pintar. E assim, se seguiram mais algumas semanas, onde ele permanecia todas as tardes no jardim com ela. Porém, ele não a ensinava nada. Ela ficava sentada de frente ao cavalete dela, tentado reproduzir as hortênsias, e ele de frente a outro, fixando seu olhar ora nela, ora na tela. Foi um dia em que ela impacientou-se com essa situação, levantou e foi falar com ele. Pediu para que ele a ajudasse, e ele mais que depressa a virou a tela para que ela não visse. Ela zangada exigiu que ele a ensinasse a pintar, pois ela simplesmente não conseguia. Ele disse, que ela deveria treinar da forma que desse, e depois ele a corrigiria. Ela então tentou novamente ver o que ele fazia  e como resposta, sentiu sua mão forte a estapeá-la. De tão forte caiu no chão. Sentiu seu peito comprimir-se, sentiu algo estranho na garganta. Do que conhecia de choro, sabia que aquele era o momento e se ela pudesse, choraria. Ele então a ajudou a levantar, e mandou sentar-se novamente. Pediu desculpas a ela, mas foi muito hostil em seus gestos. Ela sentou-se no mesmo lugar, porém estava infeliz com o que havia conhecido, ele não era mais o mesmo. No fim da tarde, ele pegou a tela e levou para o porão, de lá não saiu por três dias. Ela não tinha permissão de ir lá. Passava os dias sozinha pela casa e as noites sozinha em sua cama. No terceiro dia da ausência dele, não aguentou mais. Levantou-se, vestiu-se com seu mais belo vestido e dirigiu-se a até o porão. Para isso, passou pelo tenebroso corredor, porém na ouviu mais nada que a irritasse, porém tinha a impressão que o semblante das moças no quadro mudaram, mas embora sua própria vida fosse sobrenatural, sabia que aquilo não era possível. Desceu as escadas sem olhar para trás e chegou até uma grande porta de ferro. Bateu uma, duas, três vezes e nada. Resolveu então girar a maçaneta, abriu a porta e lá estava ele, sentado de frente o sua mesa, com uma máscara e uma ferramenta na mão. Ela foi aproximando-se dele tocando então de leve os dedos em seus ombros. Ele se assustou, deixando cair sua máscara de trabalho. O rosto dele era de fúria, e sua boca esbravejavam contra ela. Ao baixar a cabeça enquanto ele a punia com severas palavras, ela viu, sobre a mesa um corpo inerte, lindo, feminino. Os olhos fechados, lábios rosados, pele branca como a dela, mas, de longos cabelos dourados, que pendiam da mesa com grandes cachos. Sua reação foi de profunda consternação, sua dor era inexplicável. Vendo que ela descobrira seu grande feito, ele puxou sua mão direita e arrancou a aliança de seu dedo. Aquilo machucara muito, mas por dentro. Ele então arrancou seu vestido, suas meia, seus sapatos. Ela ficara completamente nua, assim como viera a esse mundo, que não mais parecia dela. Algo surreal aconteceu, lágrimas caíram do seu rosto, escorrendo sobre a pele artificial. Ele então a puxou violentamente pelo braço, levando-a para fora dali. Percorreram toda a casa, e se dirigiram para fora da propriedade, ele segurava seu braço tão forte, que acabou por quebrá-lo, mas não era o braço que doía. Atrás da casa, depois dos arbustos do jardim, havia um pequeno galpão, fechado com correntes e cadeado. Chegaram a porta, quando ele deixou seu braço e sacou um molho de chaves. Destrancou a porta e virou-se novamente para ela, então parou o seu rosto no dela por alguns instantes, percebendo pela primeira vez as miraculosas lágrimas que escorriam. Passou seus dedos pelo rosto triste, enxugando as lágrimas, e puxou-a para beijar teus lábios. E então a dor foi insuportável, sentiu seu peito, sendo rasgado, algo frio perfurava sua pele provocando uma dor excruciante e quanto os lábios dele ainda pressionavam bruscamente os dela. De repente seu  corpo foi adormecendo, ficando inerte ela foi ficando fraca e foi então que ele a largou vagarosamente. Os olhos dele novamente a penetravam, só que ela agora focava sua visão em outra cena. Nas mãos dele escorria um líquido carmim e segurava algo pulsante, algo que fora seu. Olhou então para seu peito e sentiu o buraco que ali estava, o líquido estranho também percorria sua pele, e começou a ficar mais ralo, devido aos pingos de chuva que caíam sobre seu corpo. A chuva era a única ali que se compadecia dela, começara fina e ela nem percebera, agora engrossara, ficando cada vez mais forte, como se protestasse a atitude do ser amado. Ele então puxou seu braço quebrado, e lançou-a dentro do galpão. Ela caiu, sobre coisas duras, de texturas similares, mas ela não podia ver. A escuridão tomava conta a medida que ele lacrava a porta a sua frente. Ela era apenas um brinquedo quebrado, que estava velho demais agora. A luz do luar revelou outros corpos como o dela, jogados ali. Os rostos que ela viam eram familiares, as bocas eram aquelas que protestavam em sua mente, as mesmas que a advertiam sobre ele. Seu corpo foi perdendo a sensibilidade, até que fechou seus olhos e adormeceu ao som de uma música alegre que vinha de longe. Lá dentro na casa, uma moça de cabelos dourados de longos cachos, cobria a falsa pele do vestido que ficara no porão. Recebia com um lindo sorriso a aliança de amor eterno em seu dedo. Ele então a puxou e percorreram o porão e depois o corredor dos quadros, rumo a sala, onde a música os aguardava para uma longa dança. Na parede do corredor, um novo quadro, onde uma moça, de semblante triste, estava sentada de frente a um cavalete, onde tentava pintar as hortênsias que brotavam ali.

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