Ao acordar, deu-se conta de quem
era e de todas as coisas que existiam. Ela era alguém. Não de carne e osso, mas havia sido criada
para fazer com que acreditassem nisso. Quando abriu os olhos, viu pela primeira vez
aquele que conhecia tão bem. Ela o sentia antes mesmo que desse conta de si
mesma. Ele era seu criador, inventor, seu princípio, sua razão de ser. Observou
atentamente o sorriso que roubava a cena de todo resto. Era um sorriso
triunfante, jubiloso e egoísta, mas era lindo e hipnotizante, era mais que
qualquer outra coisa que ela pudesse descrever. Delicadamente, as mãos dele
encontraram as dela, dando um leve puxão, indicando que ela deveria
acompanhá-lo. Enquanto a conduzia, começaram uma dança suave pelo porão. Essa
sensação era boa, algo em seu peito ardia de leve. Ao rodopiarem, ele cantava freneticamente
uma música desconhecida e ela, registrava cada pequeno traço do ambiente com
curiosidade. Tudo girava em cores e cheiros. Todas as coisas ali eram novas, e
ao mesmo tempo familiares. E isso era estranho para ela, estranho e bom. Ela vestiu-se então de cetim, com uma saia
linda que escondia várias camadas de tule. O corpete tinha cordões que
trançavam em suas costas. Os sapatos de boneca tinham saltos não tão altos e a
fivela que os fechava desfiava a fina meia que cobria a falsa pele. Luvas
delicadas, uma faixa no cabelo preto perfeito, que descia até quase a altura
dos quadris. Nem um fio estava fora do lugar, sua pele era lisa e branca, seus
olhos artificialmente penetrantes e curiosos. Ela estava pronta e perfeita, assim
como tinha sido projetada. Ao finalizar o ritual, ele puxou sua mão direita e
nela colocou uma aliança, que ao contrário de tudo que usava, não era nada nova.
Nela havia uma inscrição quase ilegível: Sempre fiel a você. A promessa eterna
selada nos lábios frios e inertes.
Dias se seguiram de felicidade
inesgotável. Passeios pelo parque, sorrisos, histórias, satisfação e porque
não, amor. A casa era imensa. Passaram a se conhecer melhor, ele era só dedicação
e ela afeto. Fizeram viagens, foram a Veneza, a Marselha, onde tiveram dias
felizes. Depois de meses voltaram para casa, pois ele estava sempre dizendo
algo a respeito de um novo projeto. Era um homem trabalhador e dedicado, todos
os dias ele acordava antes das seis e se dirigia ao porão onde, se trancava. Só
saía de lá tarde da noite, tempo para ele tomar banho e jantar. Ás vezes, ele
tomava vinho em sua poltrona, enquanto desfrutava da presença dela, outras
vezes, nas noites de lua cheia, iam para fora da imensa casa, e colocava-se a
contemplar o céu, ele admirava a linda lua e ela o admirava. Quando o sol
voltava, ele regressava ao seu mundo particular. Durante o dia, ele lá só saía
na hora das refeições. Ela, sem companhia e sem muito o que fazer passava o dia
observando cada canto da propriedade. As flores e plantas do jardim, os nomes
dos autores dos inúmeros livros da estante do escritório. Nos corredores,
várias pinturas de mulheres lindas, mas sempre com a mesma expressão triste no
rosto. Ela não gostava do corredor. A cada vez que passava por ali, sentia-se
observada por cada uma delas. Quando o sol se despedia, ele regressava ao seu
encontro, onde ficavam juntos, sempre contando histórias ou simplesmente
contando estrelas no céu. E foi assim por
um bom tempo.
Dois anos se passaram, os
passeios diminuíram, as histórias acabaram e mais distante ele ficava. Já não
era mais como antes. Os jantares eram cada vez menos freqüentes e os sorrisos
eram raros. O que nunca mudava era a sensação ruim que sentia, se é que sentia,
a cada vez que passava pelo corredor onde se encontravam os quadros. Um dia ao
andar pela casa a procura de novas descobertas pela propriedade, escutou uma
voz que a chamava. Achando que era dele, olhou para trás, mas nada viu além dos
vários quadros em suas molduras douradas. Chegou próximo a tela de uma moça
sentada em um jardim. Dentro dos olhos da moça viu o pânico e o alerta. Olhou
para outro quadro, e o mesmo lhe ocorreu. Correu então sem mais olhar para
trás, cerrou os ouvidos com as mãos para que não mais ouvisse os gritos de
alerta que ecoavam em sua mente. Chegou à sala, fechando a porta atrás de si, e
despencou-se sobre a poltrona de frente a lareira. Ela não sabia que sensação
ruim era aquela, mas sabia que não era nada de bom. Quando fosse noite e ele
retornasse, ela pediria para que retirasse os quadros dali. Talvez ela pudesse
aprender pintura e quem sabe faria quadro alegre para colocar ali. Viu então um
livro de capa bonita, sobre a mesa de centro, resolveu pegar e lê-lo. Era um
livro bom, tão bom que quando percebeu, ele estava parado á sua frente,
chamando-a para acompanhá-lo para jantar. Ele jantava feliz, ainda não tinha tomado
banho. Sua testa estava coberta de suor e fuligem. Ela estava sentada do outro
lado da sala de jantar, com a postura perfeita, observando-o comer.
Lembrou-se então da história do livro e
sorriu, era uma história realmente bonita e feliz. E foi pensando no livro que se
lembrou do fato que a levara a chegar a ele. Começou a conversar então com ele
sobre a ideia de poder quem sabe, aprender pintura. Ele largou seu talher
surpreso com a proposta dela, perguntou o motivo de repentina ideia. Ela
explicou da vertigem que os quadros lhe causavam. Ele baixou a cabeça, e disse
que poderia ensiná-la. Agora que ele terminara seu projeto, poderia passar as
tardes ensinando ela a pintar. E assim, se seguiram mais algumas semanas, onde
ele permanecia todas as tardes no jardim com ela. Porém, ele não a ensinava
nada. Ela ficava sentada de frente ao cavalete dela, tentado reproduzir as
hortênsias, e ele de frente a outro, fixando seu olhar ora nela, ora na tela.
Foi um dia em que ela impacientou-se com essa situação, levantou e foi falar
com ele. Pediu para que ele a ajudasse, e ele mais que depressa a virou a tela
para que ela não visse. Ela zangada exigiu que ele a ensinasse a pintar, pois
ela simplesmente não conseguia. Ele disse, que ela deveria treinar da forma que
desse, e depois ele a corrigiria. Ela então tentou novamente ver o que ele
fazia e como resposta, sentiu sua mão
forte a estapeá-la. De tão forte caiu no chão. Sentiu seu peito comprimir-se,
sentiu algo estranho na garganta. Do que conhecia de choro, sabia que aquele
era o momento e se ela pudesse, choraria. Ele então a ajudou a levantar, e
mandou sentar-se novamente. Pediu desculpas a ela, mas foi muito hostil em seus
gestos. Ela sentou-se no mesmo lugar, porém estava infeliz com o que havia
conhecido, ele não era mais o mesmo. No fim da tarde, ele pegou a tela e levou
para o porão, de lá não saiu por três dias. Ela não tinha permissão de ir lá.
Passava os dias sozinha pela casa e as noites sozinha em sua cama. No terceiro
dia da ausência dele, não aguentou mais. Levantou-se, vestiu-se com seu mais
belo vestido e dirigiu-se a até o porão. Para isso, passou pelo tenebroso
corredor, porém na ouviu mais nada que a irritasse, porém tinha a impressão que
o semblante das moças no quadro mudaram, mas embora sua própria vida fosse
sobrenatural, sabia que aquilo não era possível. Desceu as escadas sem olhar
para trás e chegou até uma grande porta de ferro. Bateu uma, duas, três vezes e
nada. Resolveu então girar a maçaneta, abriu a porta e lá estava ele, sentado
de frente o sua mesa, com uma máscara e uma ferramenta na mão. Ela foi aproximando-se
dele tocando então de leve os dedos em seus ombros. Ele se assustou, deixando
cair sua máscara de trabalho. O rosto dele era de fúria, e sua boca
esbravejavam contra ela. Ao baixar a cabeça enquanto ele a punia com severas
palavras, ela viu, sobre a mesa um corpo inerte, lindo, feminino. Os olhos
fechados, lábios rosados, pele branca como a dela, mas, de longos cabelos
dourados, que pendiam da mesa com grandes cachos. Sua reação foi de profunda
consternação, sua dor era inexplicável. Vendo que ela descobrira seu grande
feito, ele puxou sua mão direita e arrancou a aliança de seu dedo. Aquilo
machucara muito, mas por dentro. Ele então arrancou seu vestido, suas meia,
seus sapatos. Ela ficara completamente nua, assim como viera a esse mundo, que
não mais parecia dela. Algo surreal aconteceu, lágrimas caíram do seu rosto,
escorrendo sobre a pele artificial. Ele então a puxou violentamente pelo braço,
levando-a para fora dali. Percorreram toda a casa, e se dirigiram para fora da
propriedade, ele segurava seu braço tão forte, que acabou por quebrá-lo, mas
não era o braço que doía. Atrás da casa, depois dos arbustos do jardim, havia
um pequeno galpão, fechado com correntes e cadeado. Chegaram a porta, quando
ele deixou seu braço e sacou um molho de chaves. Destrancou a porta e virou-se
novamente para ela, então parou o seu rosto no dela por alguns instantes, percebendo
pela primeira vez as miraculosas lágrimas que escorriam. Passou seus dedos pelo
rosto triste, enxugando as lágrimas, e puxou-a para beijar teus lábios. E então
a dor foi insuportável, sentiu seu peito, sendo rasgado, algo frio perfurava
sua pele provocando uma dor excruciante e quanto os lábios dele ainda pressionavam
bruscamente os dela. De repente seu
corpo foi adormecendo, ficando inerte ela foi ficando fraca e foi então
que ele a largou vagarosamente. Os olhos dele novamente a penetravam, só que
ela agora focava sua visão em outra cena. Nas mãos dele escorria um líquido
carmim e segurava algo pulsante, algo que fora seu. Olhou então para seu peito
e sentiu o buraco que ali estava, o líquido estranho também percorria sua pele,
e começou a ficar mais ralo, devido aos pingos de chuva que caíam sobre seu
corpo. A chuva era a única ali que se compadecia dela, começara fina e ela nem
percebera, agora engrossara, ficando cada vez mais forte, como se protestasse a
atitude do ser amado. Ele então puxou seu braço quebrado, e lançou-a dentro do
galpão. Ela caiu, sobre coisas duras, de texturas similares, mas ela não podia
ver. A escuridão tomava conta a medida que ele lacrava a porta a sua frente.
Ela era apenas um brinquedo quebrado, que estava velho demais agora. A luz do
luar revelou outros corpos como o dela, jogados ali. Os rostos que ela viam
eram familiares, as bocas eram aquelas que protestavam em sua mente, as mesmas
que a advertiam sobre ele. Seu corpo foi perdendo a sensibilidade, até que
fechou seus olhos e adormeceu ao som de uma música alegre que vinha de longe.
Lá dentro na casa, uma moça de cabelos dourados de longos cachos, cobria a
falsa pele do vestido que ficara no porão. Recebia com um lindo sorriso a
aliança de amor eterno em seu dedo. Ele então a puxou e percorreram o porão e
depois o corredor dos quadros, rumo a sala, onde a música os aguardava para uma
longa dança. Na parede do corredor, um novo quadro, onde uma moça, de semblante
triste, estava sentada de frente a um cavalete, onde tentava pintar as
hortênsias que brotavam ali.
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