quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

O Fim

Era tudo leve, silencioso. Tudo era água ao redor. Não havia dor, nem gritos de medo. O pavor nos olhos das pessoas... Nada de guerra, nada mais... Só silêncio. E a luz distante...

De repente tudo estava frio, as gotas da chuva caíam no meu rosto, fazendo escorregar para os lados alguns fios de cabelo. Minha garganta ardia, e meu corpo experimentava o frio e a dormência. Meus pés arrastavam-se pelo chão, perdidos. Quando todo meu corpo tocou o chão, senti meus lábios sendo tocados por outros desconhecidos. A água saía, o coração voltava a bater quase que normalmente. Depois de alguns minutos, pude abrir ainda com dificuldade os meus olhos. Estavam doloridos e ardiam também. Então vi a silhueta dele, e seus olhos me observavam. Sua expressão era de alívio.

Consegue andar? Ele me perguntou enquanto olhava para os lados a procura de algo que eu não entendia.

Eu sonhei que eu estava sendo perseguida por monstros e...

Vamos, nós não podemos ficar aqui parados.

Ele então me ajudou a levantar, e passando um dos meus braços ao redor do seu pescoço, começamos a andar, um pouco mais rápido do que eu poderia naquele momento. A todo instante ele olhava para os lados a procura de alguma coisa.

Você não sonhou se é isso que quer saber. Já está quase amanhecendo e eles vão voltar a atacar. Como você foi parar no rio?

Fugindo, acho? É real então?

Quisera eu poder dizer que não, mas é bem real. E eles estão se multiplicando ao que parece. Eles pegaram alguém que você conhece?

Meu coração deu uma fisgada dolorosa naquele momento.

Todos que eu conhecia. Minha família, amigos e...

Eu sei, eu também! ─ Ele suspirou alto, como se colocasse toda a dor para fora. ─A propósito, meu nome é Tom.

Julia. ─ Disse baixinho, a garganta ainda doía. Sinto muito pela sua perda.

─ Obrigado. Nós já estamos chegando.

─Onde nós vamos?

─ Nos abrigar. Temos que ficar longe dessas coisas. Tem um grupo que está escondido na saída da cidade, esperando por sobreviventes para poder sair daqui.

Andamos por mais alguns minutos. Estranhamente eu já me sentia melhor para caminhar. Um grupo de umas trinta pessoas estava escondido em um antigo ferro velho. Crianças, homens, mulheres... Gente com o medo estampado nos olhos. Muitos estavam ao redor de uma fogueira, alguns improvisavam comida para os mais novos.

─ Acabou. Todos estão sem vida. Só encontrei a Julia, no rio aqui perto. Estava se afogando, mas consegui reanimá-la. Partimos em uma hora. Espero que todos estejam preparados.

Tom me levou para perto da fogueira. A água do rio estava fria demais, e todo meu corpo tremia convulsivamente. Ele então pegou um cobertor e o passou envolta dos meus ombros.

─ Vou ver se todos estão se preparando. Tente se recuperar um pouco, nossa viagem será longa.

Assenti com a cabeça, estava frio demais até para falar. Minha boca tremia.

Depois de alguns minutos eu já me sentia mais forte e confortável, mas ainda sim tentava reprimir meus pensamentos, com medo que eles me levassem a lembrar da última cena que vi antes de me afogar. Uma mulher sentou ao meu lado, em cima da lataria de um chevy. Era loira, olhos escuros, magra. Seu rosto estava coberto de fuligem, e haviam marcas de lágrimas desenhadas em suas bochechas. Ela então me olhou, esboçando um sorriso daqueles que agente mostra procurando forças. Resolvi então fazer algumas perguntas.

─Você sabe o que eram aquelas coisas?

─Não sei o nome, mas sei o que estão fazendo. Eu acabei de perder meu marido, sabe. Estávamos em lua de mel.

Olhei então sua mão esquerda, e lá estava uma linda aliança dourada, com algumas pedrinhas que brilhavam discretamente.

─Sinto muito mesmo.

─ Ele me salvou. Estávamos fugindo. Essas coisas apareceram no hotel. Ele se colocou na minha frente, na hora que apontaram aquela coisa na minha direção. Então a coisa arrancou algo brilhante, ofuscante eu diria. Do peito do meu marido. Ele ficou no chão, ainda respirava, mas seus olhos tinham perdido o brilho e não havia mais vida ali. Então quando a coisa se aproximou, achei que seria minha vez, mas ela pegou o objeto que brilhava no ar, exatamente onde Harold estava de pé, e o engoliu. Foi a oportunidade que tive de sair correndo. Também me encontrei com Tom, ele me trouxe.

─ Seu marido estava vivo?

─ Seu corpo sim, mas ele já não estava mais lá.

─ Essas coisas se alimentam do coração dos amantes Julia, ─ Disse Tom, se aproximando­─ das pessoas que amam. Estão fazendo com que o amor entre em extinção, por assim dizer.

─ Mas, não existe como lutar? Matar essas coisas? Não poderemos fugir pra sempre.

─ Eles são muitos, e tem suas armas. Nós somos poucos e estamos sós. Não há como lutar, é uma guerra perdida para nós. O que podemos fazer é fugir, e com sorte evitar que se alimentem do amor de outras pessoas.

─ Eu sei o que eles são. ─ Falou uma garota atrás de nós, seus cabelos eram negros e curtos, seus olhos eram azuis e ela era baixinha. Seu nome era Anne. Até mesmo Tom parou para ouvir o que ela tinha a dizer. ─ Eles são pessoas como nós. Seres humanos. Só que nunca conheceram o amor, nunca o souberam viver, sentir. Por isso se alimenta do das pessoas.

─Aquelas coisas não tinham como ser humanas, não é possível que sejam. ─ Disse Tom.

─ A falta de amor os consumiu, tornando-os esses monstros. No final, é engraçado como o próprio ser humano é capaz de destruir tudo, até o amor.

Passamos algum tempo refletindo sobre o que Anne havia nos contado. Era difícil que acreditar que tudo acabaria pelas nossas próprias mãos. A falta de amor. Era doloroso pensar nisso. Pensar que o mundo que conhecíamos acabaria habitado somente por criaturas sem amor, sem alma.

De repente ouvimos um grito de pavor vindo por trás de onde estávamos.

─ CORRA TOM! ESTÃO VINDO! CORRA!

Todos estavam correndo, muitos gritavam. Eram seis e estavam vindo e ainda não tinha amanhecido. Começamos a fugir, a vagar sem direção. Eu não conseguia correr, mas andava o mais rápido que podia. De repente percebi que era ridículo fugir, e que talvez algo pudesse ser feito. Talvez eu pudesse fazer algo. Então entrando em uma campina, onde ainda dava para ver várias pessoas buscando uma rota melhor para a fuga, foi que eu decidi parar. Respirei fundo e olhei para trás. Os seis monstros se encontravam ali. Um deles estava pronto para atacar Tom, quando gritei:

PARA!

Os seis pararam o que estavam fazendo e olharam para mim, sem entender. Percebi que seus lábios eram escuros, seus olhos, negros por completo, a pele translúcida, sem vida. Eles seguravam armas, com um cano da espessura de um braço. Delas, saíam fumaça preta. O sol saía no horizonte, e eles esperavam que eu continuasse.

─ Parem com isso! ─ Eu disse─ não precisa ser assim. Todos nós podemos ajudar vocês. Vocês não precisam arrancar a força o amor das pessoas, não precisam se alimentar dele. As coisas não precisam ser assim.

Eles pareciam me ouvir atentamente, porém não falavam nada. As pessoas ao redor estavam incrédulas, suas expressões eram de desespero e confusão. Um deles levantou a arma e a apontou para minha direção.

─Por favor, olha, confia em mim. Nós podemos mudar isso. Por favor, não façam mais isso.

A arma então foi abaixada, e antes que eu pudesse sentir alívio, ela foi apontada para o peito de Tom, e depois do estrondo, seu coração pairava no ar, com uma luz intensa iluminando o lugar. Os seis começaram o extermínio de todos ali. Por algum motivo eu não corri não me mexi. Enquanto todos caíam no chão, eu via seus olhos perdendo o brilho da vida. Não havia mais o que fazer. Nós estávamos perdendo. Os amantes estavam perdendo. Depois de um tempo houve silêncio. Todos estavam no chão. Não havia mais ninguém, ninguém além de mim mesma e as criaturas. Elas então me encararam. Um deles deu um sorriso frio, tão frio que era insuportável de olhar. Abaixei então minha cabeça, e coloquei minhas mãos em frente ao peito. Não que fosse adiantar ou impedir o que viria, mas eu pelo menos sentiria meu coração pulsante uma vez mais. Fechei meus olhos e pedi em oração pela humanidade. Então veio um estouro, depois uma luz ofuscante e nada mais.