segunda-feira, 19 de março de 2012

Conto da meia noite

Alguns postes iluminavam a rua, junto às luzes de carros que passavam por ali. O latido de um cachorro ecoava pelo ar, enquanto ela estava sentada no ponto de ônibus; aguardando.

Seus cabelos negros e sujos estendiam-se até a cintura. Seu vestido branco, cheio de manchas amareladas, rasgos e lama na barra. Seus dedos percorriam á altura de seu rosto, onde ela parecia dedilhar as teclas de um piano visível somente para ela. Tudo que eu conseguia ouvir de seus lábios, eram inaudíveis tique, taque, uma imitação de um relógio.

Passamos alguns minutos sentados ao lado um do outro. O cachorro ainda latia. Um homem virava a esquina, e suavemente caminhava em direção ao ponto onde estávamos. Os olhos da garota estavam vazios, distantes. Seus lábios secos detalhavam sua aparência doentia. Sua pele era pálida demais e parecia quase translúcida em contraste com a luz da lua. Algumas gotas de chuva começavam a cair, e eu sabia que a qualquer momento teria de começar meu trabalho. Pigarreei alto, querendo chamar a atenção da garota. Com seu olhar perdido, ela procurou um pouco até que estranhamente conseguiu me localizar do seu lado. Então ela sussurrou algumas palavras:

Ainda não é a minha vez.

Então continuou a fixar seu olhar em algo distante, enquanto dedilhava o ar, como quem toca uma doce melodia. Novamente eu podia ouvir seus tiques e taques. O homem, então ao se aproximar mais, começou a apertar o peito. Sentia dor. Era intensa. Tentou se apoiar no poste e pedir ajuda a garota, que de alguma forma não podia ouvi-lo. Depois de alguns minutos sufocado em dor, ele caiu. Seu coração parara. Foi então que o ônibus chegou. Levantei-me, junto com o passageiro que chegara ali e subimos, enquanto a garota permanecia em seu lugar. Inerte. Fiquei observando sua expressão pela janela, enquanto o ônibus partia.

Já passava da meia noite, e lá estava eu novamente, esperando pelo ônibus no mesmo ponto; na mesma rua. O cachorro latia insistentemente na minha direção, embora estivesse do outro lado da rua. Dizem que animais são sensíveis a coisas que os humanos não podem ver. Enquanto aguardava novamente, observei a mesma figura pálida ao meu lado. Se não fosse outra circunstância, eu teria me assustado. A garota parecia ter desistido de seu piano imaginário. Ela brincava com as rendas de seu vestido. Observava atentamente os buraquinhos que formavam desenhos simétricos ao longo da saia. Suas unhas estavam sujas e quebradas. Seus pés descalços e os cabelos mais emaranhados que antes. Apesar de tudo, ela prosseguia com sua imitação rouca dos ponteiros do relógio. Passaram-se alguns minutos até que uma ambulância que corria a toda velocidade, passou por nós. Ao passar em frente ao ponto onde estávamos, apareceu do nada uma garotinha por detrás, com seus quase doze anos. Enquanto a ambulância já ia longe, ela atravessava suavemente a rua até que se juntou a nós. As gotas de chuva tinham parado ao que parecia, foi então que o ônibus apareceu novamente. A menina do vestido branco parara com sua imitação e novamente sussurrou.

─Ainda não, mas falta pouco agora.

E então prosseguiu com sua ocupação anterior. O cachorro agora latia freneticamente, e antes que eu percebesse, o ônibus havia parado na minha frente outra vez. Novamente era hora de trabalhar. Subimos os dois então, enquanto via a pálida menina, ficando para trás. Ela tremia. Fiquei observando-a a distância até que não mais pude vê-la.

Na terceira noite, fazia muito frio. A chuva estava fina, porém era acompanhada de um vento cortante. Eu não me incomodava muito com o frio. Já se passava das duas da manhã, e lá estava ela novamente. Seus tiques e taques, eram interrompidos vez ou outra pela falha em sua respiração. Seus dedos dessa vez procuravam em que se segurar. Ela parecia fraca demais. Uma mulher então andava rápido demais pela rua. Parecia fugir de alguém. Logo em seguida pude entender por que. Um homem encapuzado se aproximava dela. Quando estava próximo demais, conseguiu puxar a alça da bolsa dela. A mulher estava apavorada. Eles se encontravam do outro lado da rua. Enquanto ele abria a bolsa, ela se ajoelhava chorando, pedindo proteção a Deus. Pegou então o dinheiro na carteira, um telefone e jogou a bolsa no chão, enquanto com uma das mãos, apontava uma arma para a cabeça da mulher. Seu olhar parou na menina do vestido branco ao meu lado. Ao vê-la, optou por correr, deixando a mulher no chão, no meio da rua, em frente a nossa parada, aos prantos, soluçando. Seu coração estava disparado. Recolheu então suas coisas, e correu pelo lado oposto. Quando virou a esquina me dirigi à garota, que quase não respirava mais e disse:

─ Involuntariamente você salvou uma vida hoje, não é mesmo?

─ Fiz exatamente... ─Puxou o ar para seus pulmões com toda força que ainda tinha─... O contrário do que você faz.

─ Ele pensou que você era uma assombração. ─ Falei quase num riso.

─Porque eu posso ver e ouvir você agora?

─ Porque finalmente é sua vez de pegar o ônibus comigo. Chega de sofrimento.

─ Eu vou para casa agor...

Precipitei-me ao tocar seu braço impossibilitando sua última fala.

Ao meu lado agora, uma linda garota de vestido branco, com olhos claros, cabelos brilhantes mãos macias e limpas, sem sinal de sofrimento me olhava.

─A morte não é tão ruim quanto parece.

Olhou para o corpo frio e vazio no banco do ponto de ônibus. Seu olhar era de alegria e compaixão.

─ Quero ir para casa.

─ Vamos então. O ônibus se aproxima.

Ele parou novamente para que pudéssemos subir. Ela sentou-se então na janela, observando o que ficava para trás. Enquanto eu me despedia daquela noite, ela se despedia daquela vida.

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